roteiro ilustrado de mais uma ida ao primavera sound
Desta vez resolvi alterar o formato e aligeirar a reportagem, ao invés de demorar seis meses a escrevê-la. A cartilha é a mesma de sempre: três dias de pouco repouso, andar constantemente a correr de um lado para o outro, poucos concertos vistos do início ao fim (embora este ano tenhamos melhorado consideravelmente a nossa marca, em particular no último dia), comes & bebes a um preço exorbitante (desta feita optámos por levar farnel de fora. A carteira agradeceu) e Barcelona continua linda. Dedo no scroll down e siga.
Há coisas que faziam sentido há uns anos atrás. Hoje já não. Será o caso dos Bis, a quem coube as honras de abertura do nosso festival. A curiosidade era maior do que a expectativa, já que foi daquelas bandas com que me cruzei durante os meus late teens, mas que não acompanhei em anos posteriores. Confirmaram as minhas suspeitas/receios: os anos 90 ficam-lhes a matar, mas não passa disso. Não que tenha sido um mau concerto, mas é daquelas sonoridades que se ouve em determinada época e com determinada idade. Depois disso há que arrumar a trouxa e seguir em frente.
Será também o caso das The Slits, embora por outros motivos. Ao contrário do que se possa dizer, "punk's not dead", não será essa a causa da perda de fulgor das Slits. Quando elas são punk com um pitada de dub não há absolutamente nada a apontar, o problema é que algures entre 1981 e 2005, Ari Up mudou-se para Kingston, Jamaica e descobriu Jah. Lamento informar, mas se eu quisesse adorar a Jah e ouvir odes à Babilónia ia àquele sítio onde Judas perdeu as botas, no início de Agosto. Menos mal, sempre iam alternando entre o reggae e o punk, o que culminou num fifty/fifty: metade mau, metade bom.
Ontem como hoje, há coisas que nunca satisfizeram o meu desejo de requinte. Aqui a falha talvez seja minha, que nunca vi grande interesse em nomes como Pavement, Mission of Burma ou Polvo. Quanto aos primeiros, confesso que nunca percebi o porquê de tanto burburinho. Já os dois últimos vieram confirmar a minha opinião de há dois anos atrás: actuações com pouca chama e/ou facilmente esquecíveis. Conclusão: fiéis ao lema "so much to do, so little time", dedicámos apenas escassos minutos (segundos?) da nossa atenção a qualquer uma das três bandas.
Ontem como hoje, há coisas que satisfazem o meu desejo de requinte, mas ao vivo a conversa é outra... Gosto de ouvir, talvez conheça pouco da obra gravada, mas o que conheço é-me agradável ao ouvido. Ao vivo, defraudaram as expectativas. As medalhas de mau comportamento deste ano vão para os The Fall, Wire e Built to Spill.
Outras velhas glórias que ficaram pelo caminho. É muito concerto em três dias e há que fazer escolhas. Era prioritário tudo o que ainda não tivéssemos visto ao vivo e que nos despertasse a curiosidade. Caso não fosse possível aplicar esse critério, deixávamo-nos vogar ao sabor da nossa disposição para ver e ouvir isto ou aquilo. Dos Pixies, responsáveis por uma monumental enchente (a maior de que me recordo no Primavera Sound) no segundo dia de festival, descartámo-nos sem dificuldades nem remorsos, uma vez que já os tínhamos visto duas vezes. Os Spoon foram pelo mesmo caminho. Já os Low estavam longe demais, desterrados no auditório, para que assistir à sua actuação fosse viável, os The Charlatans sobrepostos a Built to Spill, e os The New Pornographers foram uma baixa forçada, devida a um atraso da nossa parte - porem os pornógrafos a abrir um palco, mesmo que o principal, pareceu-me indecente.
Mas, às vezes, a tradição ainda é o que era. Vivemos numa época de revivalismos e de reuniões de bandas que marcaram os nossos verdes anos. É, como tal, praticamente inevitável que qualquer festival de música que se preze acabe também por embarcar nessa maré saudosista, dando lugar de destaque no seu cartaz a alguns (mais ou menos) ilustres dinossauros. Mas se na maioria das vezes a reunião ou o dar continuidade à carreira não é mais do que uma forma flagrante e desavergonhada de a banda amealhar uns cobres, outras há em que aqueles indivíduos ainda têm, de facto, algo relevante a oferecer. Foi o caso dos Superchunk, responsáveis por uma das actuações mais aguerridas e bem dispostas do festival.
Mas também dos Shellac, que nos trouxeram à memória a primeira prestação a que deles assistimos, há dois atrás naquele mesmo palco. Irrepreensível e infinitamente superior à actuação morninha do ano passado.
Ou ainda de Michael Rother e seus dois amigos, que nos apresentaram a música dos Neu!. Aquilo que tresandava a uma tentativa nada altruísta de recuperar o legado dos Neu! para benefício próprio de Rother, foi afinal uma homenagem elegantíssima a esse mesmo legado, que se traduziu numa actuação contida mas majestosa. Supreendeu-me, a mim que nem nunca fui grande apreciadora de krautrock. O que é dizer muito.
Ou, finalmente, dos Liquid Liquid, com a sua festarola em palco e direito ainda a bailarino de luxo, na pessoa de Tim Harrington.
Coisas ouvidas de raspão, algumas agradaram, outras não. Apanhámos alguns acordes dos The Psychic Paramount a caminho dos Endless Boogie e imediatamente ficámos de antenas no ar. Os Titus Andronicus apanhámos à saída de The Fall e soou igual ao litro. Já os Beach House (Bichauze para os inimigos) tivémos o desprazer de ouvir algures entre CocoRosie e Wire, e confirmaram a sonolência causada em disco. Os primeiros são um nome a aprofundar, os segundos... meh, e os últimos são definitivamente para esquecer.
Coisas ouvidas de raspão, que encaixam na categoria "WTF?!... Que merda é esta?!". Mau, mau, muito mau. Primeiro foram os Sleigh Bells com a sua fórmula: gajo começa com um riff à Slayer/entra beat box com uma batida pastilhada-anos-90/entra gaja com vozinha histriónica. Seguem-se os Cold Cave, que me pareceu estarem a fazer concorrência directa a Marc Almond, que actuava à mesma hora no palco Ray-Ban. Termina com os The Bloody Beetroots Death Crew 77 que, não há forma simpática de o dizer, são maus demais para ser verdade.
Meh... Engraçadinho, mas não passa disso. Não foi bom nem mau, nem carne nem peixe. Deles não há-de rezar a minha história. São eles e elas: The xx (tudo bem, a música é bonita, está bem composta e é bem interpretada, as vozes não falham, as letras têm todo o aspecto de ser corta-pulsos, mas agora expliquem-me lá: porquê todo o hype? O que é que eles apresentam de extraordinário e/ou nunca antes visto?) e CocoRosie (apesar de terem alguns pontos de interesse, em particular a beat box humana, a sensação final com que fiquei - ou o aftertaste, se preferirem - foi de alguma indiferença).
As agradáveis surpresas. Coisas que não faziam parte do nosso cardápio inicial, mas que acabaram por surpreender pela positiva. É caso dos Ui, que se movem num universo próprio, algures entre o post-rock de Chicago e o math rock.
Mas também dos Wild Beasts, cujos discos me deixavam com algumas reservas, mas que acabam por resultar muito bem ao vivo. Os falsettos-imagem-de-marca adequam-se na perfeição e não falham uma nota, acabando o conjunto música e voz por ser muito mais coeso e belo do que aquilo que os discos poderiam fazer supor.
E, ainda no mesmo dia, dos The Books, que apenas vimos pela conjugação de dois felizes acasos: primeiro, porque eles estavam escalados para tocar no palco ATP pelas 19 horas e, devido a problemas de som, acabaram por ser empurrados para as 00h30, em substituição dos Seefeel, que tinham cancelado a sua actuação já há umas semanas, e, segundo, porque devido a um lapso meu, deveríamos estar no palco Vice, aguardando pelos Mission of Burma. Mas há certos lapsos que vêm por bem, e acabámos (ainda bem!) por relegar os MoB para segundo plano.
Ou mesmo dos Beak>, projecto de Geoff Barrow dos Portishead, que, à falta de investigação prévia, temia estar demasiado colado à sempiterna banda de Beth Gibbons e companhia, equívoco esse que foi rapidamente desfeito, demonstrando assim que nem tudo o que está associado a Portishead é Portishead, podendo mesmo supreender-nos com propostas mais válidas e interessantes que o trabalho recente destes últimos.
As desagradáveis desilusões. Felizmente, foram poucas, sendo a mais notória os Yeasayer, provavelmente mais um caso de "one record wonders". Depois de "Odd Blood", ainda lhes dei o benefício da dúvida, pensando que eles se pudessem redimir ao vivo. Erro meu, pois não só não se redimiram, como desceram ainda mais uns furos na minha consideração. A voz de Chris Keating ao vivo é verdadeiramente miserável (ahh, os milagres de produção...), o som enrolado não ajudava à festa, restando apenas Anand Wilder para dar algum brio à coisa. Mas depois de testemunhar o homicídio a sangue frio de "Sunrise" e uma "2080" algures entre o razoável e o sofrível, não consegui resistir até o fim e à interpretação de "Ambling Alp", o crowd pleaser e, quanto a mim, único verdadeiro ponto de interesse de "Odd Blood". Talvez tenha salvo a honra do convento, mas algo me diz que não terá sido esse o caso. O que me causa um certo prurido no meio de tudo isto é verificar que uma banda tão interessante e que tinha tanto a jogar em seu favor (vide "All Hour Cymbals") limita-se a regredir no sentido de se metamorfosear em mais uma banal banda hipster saída de Brooklyn.
Seguem-lhes as pisadas os Sic Alps, relativamente aos quais há também a considerar um pré e um pós: os Sic Alps do rock psicadélico frito e estimulante de antes e os Sic Alps do rock psicadélico de elevador e maçador de agora. Há quem tenha referido problemas de som durante a actuação, mas o único problema que eu detectei ali foi mesmo o novo rumo tomado pela banda.
Em disco a coisa resulta melhor. Foram também uma espécie de desilusão. Os discos auguravam mais e melhor, mas no teste ao vivo e a cores ficaram aquém do esperado. São exemplos disso os Ganglians, que me soaram algo repetitivos.
E dos Japandroids, com uma actuação que me pareceu perfeitamente genérica. Mais do mesmo, igual a tantas outras coisas já antes vistas, particularmente em tempos recentes.
A qualidade é garantida. Esta secção é dedicada aos repetentes do Primavera Sound, que nos voltaram a brindar com grandes concertos. Comecemos pelos Fuck Buttons, com mais uma das suas estrondosas prestações.
Seguem-se Scout Niblett, desta vez numa actuação a céu aberto que, se perdeu em intimismo, o mesmo não se passou com a beleza agridoce das suas canções...
... Os incontornáveis Les Savy Fav, mais o insubstituível, o único, o inefável, o verdadeiro animal de palco Tim Harrington. Aquela 'entrada' foi pura e simplesmente genial!...
... Bradford Cox e o seu one-man show intitulado Atlas Sound, que com a sua simpatia e as suas melodias singelas e despojadas, continua a maravilhar o público do festival catalão. Não há como não gostar daquela personagem frágil e que nos parece tão sincera...
... E os Health que, não obstante a hora tardia cumulada com um atraso de cerca de meia hora (coisa raríssima neste Primavera Sound. Foi aliás o único que testemunhei) que quase nos levou à desistência, ofereceram a todos os resistentes uma actuação demolidora, de fazer erguer dos mortos o mais putrefacto dos cadáveres.
Party, party, party all the time! Concertos-espetáculo e com eles. Sejam eles os israelitas Monotonix, que arrecadam o prémio para o concerto mais tresloucado, frenético e imprevisível do festival...
Ou os Chrome Hoof, hibrído esquizóide doom-disco-futurista, fruto das mentes tortuosas dos irmãos Smee...
Ou ainda os The King Khan & BBQ Show, duo mais ou menos canadiano, misto de Black Lips (mas ainda mais divertidos), toucados ameríndios, turbantes, indumentária de gosto duvidoso e um polvo. Proporcionaram imperdíveis e estapafúrdios momento de galhofa, tanto no fórum, como no parque Joan Miró (já os The Almighty Defenders terão que ficar para uma próxima oportunidade).
Bom, mas BOM! Para além das já atribuídas, as restantes medalhinhas de ouro desta edição do Primavera Sound vão para... Os Broken Social Scene: Arcade Fire, ponham os olhos nesta trupe ao invés de andarem para aí armados ao pingarelho.
Os Thee Oh Sees: a fritura mais cool do festival.
Os Black Math Horseman: um portento. No que ao peso diz respeito, foram um bálsamo no meio de tanta indie-hipsterzice. Na fila da frente fomos uns quantos a partilhar desse mesmo sentimento. E, para quem ainda não sabe, Sera Timms é a voz que Laura Pleasants gostaria de ter.
Os Endless Boogie: um rock garageiro da velha escola (literalmente) cai sempre bem ao final da tarde.
Os Grizzly Bear: perfeito, perfeito, perfeito! Não falham em absolutamente nada. O hype, bem como o anúncio a uma certa marca automóvel, é mais que merecido.
E, last but not least, Ben Frost, com a melhor, se não única, demonstração de ruído pica-miolos da edição deste ano do Primavera Sound. Era ver o homem que veio do gelo a alienar o público, com certeza habituado a sonoridades mais sensaboronas, que lentamente ia abandonando o recinto do palco ATP.
O concerto do festival. Há coisas que só se fazem por uma banda quando se tem 19 anos. Há coisas que uma gaja com 31 anos faz por uma banda, que só se justificam se a gaja gostasse dessa mesma banda desde os 19 anos. Como apanhar um lugarzinho mesmo no centro da grade e por ali aguardar pacientemente durante 50 minutos, com tanta outra coisa a acontecer noutros palcos. Como, já com a banda em palco, berrar (ainda hoje a minha faringe se ressente) e pular e cantar as letras do início ao fim, mesmo as que já estão menos frescas na memória (inventa-se). É aquele tipo de devoção exacerbada de adolescente que uma gaja com 31 anos só poderia dedicar a uma banda que, para ela, signifique muito, muito, mas mesmo muito.
Clichés à parte, a verdade é que os Sunny Day Real Estate acompanharam-me durante os piores e melhores momentos da minha vida. E continuam a acompanhar, pois foi com enamoramento redobrado que recuperei "How It Feels to Be Something On" aqui há uns meses atrás, quando soube da reunião banda. E não obstante a minha opinião geralmente negativa face a estas reuniões, esta seria sempre verdadeiro motivo de celebração. Imperdível. Um momento histórico no que à minha história pessoal diz respeito. Pois, como Dan Hoerner disse, "foi um sonho tornado realidade". Para eles, para mim e para tantos outros como eu, que preenchiam as primeiras filas frente ao palco Ray-Ban largos minutos antes do início do concerto.
O que, de certa forma, acaba por ser um presente envenenado, pois, mau ou bom, seria indubitavelmente o concerto da vida de muitos dos presentes, só por ser SDRE. Mas foi perfeito, não tendo sido perfeito. Foi o concerto perfeito para os curtos 55 minutos, mais coisa menos coisa, de que eles dispunham. Com todo este despertar de velhas recordações e toda a emotividade (passe o trocadilho) e subjectividade que isso acarreta, não há como não ser o meu concerto do ano.
As baixas calculadas. Por um motivo ou outro, este ano ficaram pelo caminho os seguintes nomes: Tortoise, Real Estate, No Age (os três caem na categoria dos já vistos), Sian Alice Group, Matt & Kim, Za!, Dum Dum Girls (tanta coisa boa para ver, tanta sobreposição... Ainda fizemos uma segunda tentativa de aproximação à Dum Dum Girls no parque Joan Miró, mas graças a um incompreensível adiantamento do início do concerto em cerca de 25 minutos, já só apanhámos o último tema), Los Campesinos! e Black Lips (as filas para a sala Apolo demoveram-nos de sequer tentar a entrada, tanto no showcase da Wichita, como na festa de encerramento. Como tal, este ano vimos o pré e o pós por um canudo). Realmente lamentável foi termos perdido os Apse, pois os breves segundos a que assistimos deixaram-nos com água na boca... Mas os Chrome Hoof falaram mais alto.
Os topes-três.
Dia 27
1. Chrome Hoof
2. Monotonix
3. Ui (e a batota...) ex aequo com The Books
Dia 28
1. Black Math Horseman
2. Les Savy Fav
3. The King Khan & BBQ Show
Dia 29
1. Sunny Day Real Estate
2. Grizzly Bear
3. Ben Frost
Prognósticos só depois do jogo. Já tinha referido em diversas ocasiões que esta edição do Primavera Sound me parecia a mais fraca dos últimos três, quatro anos. Fosse pela nítida aposta em velhos dinossauros (a maioria dos quais pouco ou nada me dizem) cujo ganha-pão depende, em larga medida, do circuito festivaleiro primaveril e estival (espera-se que o festival catalão seja melhor e mais arrojado que isso), aposta essa que, no fundo, não é mais do que uma forma de cobrir despesas e garantir a afluência de determinado público, que é sempre fiel a tais bandas; fosse pelo investimento nalguns já quase-eternos repetentes do festival; ou, agora no âmbito das novidades, pelo investimento em bandas que, sendo ainda relativamente novas, são já do domínio comum da intelligentsia; ou ainda, com grande pena minha, pela redução do investimento em nomes ligados à música extrema/de franjas nos seus mais diversos quadrantes e pelo consequente decréscimo no ecletismo de que a organização tanto se vangloria.
Talvez seja a crise, talvez seja este o rumo pretendido desde sempre. Seja como for, as nossas expectativas este ano eram relativamente baixas. E foi por isso mesmo que talvez tenha gostado mais desta edição do festival que da do ano passado. Porque não ia com ideias pré-concebidas, nem sequer sabia o que esperar em muitos dos casos. Foi mais fácil surpreender-me e suplantar expectativas porque, pura e simplesmente, não as tinha. E surpreendida fiquei, com coisas que não conhecia (ou que conhecia mal) e que me deixaram encantada, com outras que, conhecendo relativamente bem, esperava um concerto fraco ou pouco interessante, com outras ainda que foram tudo aquilo que eu estava à espera, ou mesmo com as desilusões, pois são essas que nos fazem dar o devido valor àquilo que foi realmente bom.
Posto isto, resta-me apenas dizer adeus que, muito provavelmente, não será até para o ano, porque com o preço dos bilhetes a escalar cerca de 20€ por ano, a coisa começa a parecer cada vez mais puxada.
Há coisas que faziam sentido há uns anos atrás. Hoje já não. Será o caso dos Bis, a quem coube as honras de abertura do nosso festival. A curiosidade era maior do que a expectativa, já que foi daquelas bandas com que me cruzei durante os meus late teens, mas que não acompanhei em anos posteriores. Confirmaram as minhas suspeitas/receios: os anos 90 ficam-lhes a matar, mas não passa disso. Não que tenha sido um mau concerto, mas é daquelas sonoridades que se ouve em determinada época e com determinada idade. Depois disso há que arrumar a trouxa e seguir em frente.
Será também o caso das The Slits, embora por outros motivos. Ao contrário do que se possa dizer, "punk's not dead", não será essa a causa da perda de fulgor das Slits. Quando elas são punk com um pitada de dub não há absolutamente nada a apontar, o problema é que algures entre 1981 e 2005, Ari Up mudou-se para Kingston, Jamaica e descobriu Jah. Lamento informar, mas se eu quisesse adorar a Jah e ouvir odes à Babilónia ia àquele sítio onde Judas perdeu as botas, no início de Agosto. Menos mal, sempre iam alternando entre o reggae e o punk, o que culminou num fifty/fifty: metade mau, metade bom.
Ontem como hoje, há coisas que nunca satisfizeram o meu desejo de requinte. Aqui a falha talvez seja minha, que nunca vi grande interesse em nomes como Pavement, Mission of Burma ou Polvo. Quanto aos primeiros, confesso que nunca percebi o porquê de tanto burburinho. Já os dois últimos vieram confirmar a minha opinião de há dois anos atrás: actuações com pouca chama e/ou facilmente esquecíveis. Conclusão: fiéis ao lema "so much to do, so little time", dedicámos apenas escassos minutos (segundos?) da nossa atenção a qualquer uma das três bandas.
Ontem como hoje, há coisas que satisfazem o meu desejo de requinte, mas ao vivo a conversa é outra... Gosto de ouvir, talvez conheça pouco da obra gravada, mas o que conheço é-me agradável ao ouvido. Ao vivo, defraudaram as expectativas. As medalhas de mau comportamento deste ano vão para os The Fall, Wire e Built to Spill.
Outras velhas glórias que ficaram pelo caminho. É muito concerto em três dias e há que fazer escolhas. Era prioritário tudo o que ainda não tivéssemos visto ao vivo e que nos despertasse a curiosidade. Caso não fosse possível aplicar esse critério, deixávamo-nos vogar ao sabor da nossa disposição para ver e ouvir isto ou aquilo. Dos Pixies, responsáveis por uma monumental enchente (a maior de que me recordo no Primavera Sound) no segundo dia de festival, descartámo-nos sem dificuldades nem remorsos, uma vez que já os tínhamos visto duas vezes. Os Spoon foram pelo mesmo caminho. Já os Low estavam longe demais, desterrados no auditório, para que assistir à sua actuação fosse viável, os The Charlatans sobrepostos a Built to Spill, e os The New Pornographers foram uma baixa forçada, devida a um atraso da nossa parte - porem os pornógrafos a abrir um palco, mesmo que o principal, pareceu-me indecente.
Mas, às vezes, a tradição ainda é o que era. Vivemos numa época de revivalismos e de reuniões de bandas que marcaram os nossos verdes anos. É, como tal, praticamente inevitável que qualquer festival de música que se preze acabe também por embarcar nessa maré saudosista, dando lugar de destaque no seu cartaz a alguns (mais ou menos) ilustres dinossauros. Mas se na maioria das vezes a reunião ou o dar continuidade à carreira não é mais do que uma forma flagrante e desavergonhada de a banda amealhar uns cobres, outras há em que aqueles indivíduos ainda têm, de facto, algo relevante a oferecer. Foi o caso dos Superchunk, responsáveis por uma das actuações mais aguerridas e bem dispostas do festival.
Mas também dos Shellac, que nos trouxeram à memória a primeira prestação a que deles assistimos, há dois atrás naquele mesmo palco. Irrepreensível e infinitamente superior à actuação morninha do ano passado.
Ou ainda de Michael Rother e seus dois amigos, que nos apresentaram a música dos Neu!. Aquilo que tresandava a uma tentativa nada altruísta de recuperar o legado dos Neu! para benefício próprio de Rother, foi afinal uma homenagem elegantíssima a esse mesmo legado, que se traduziu numa actuação contida mas majestosa. Supreendeu-me, a mim que nem nunca fui grande apreciadora de krautrock. O que é dizer muito.
Ou, finalmente, dos Liquid Liquid, com a sua festarola em palco e direito ainda a bailarino de luxo, na pessoa de Tim Harrington.
Coisas ouvidas de raspão, algumas agradaram, outras não. Apanhámos alguns acordes dos The Psychic Paramount a caminho dos Endless Boogie e imediatamente ficámos de antenas no ar. Os Titus Andronicus apanhámos à saída de The Fall e soou igual ao litro. Já os Beach House (Bichauze para os inimigos) tivémos o desprazer de ouvir algures entre CocoRosie e Wire, e confirmaram a sonolência causada em disco. Os primeiros são um nome a aprofundar, os segundos... meh, e os últimos são definitivamente para esquecer.
Coisas ouvidas de raspão, que encaixam na categoria "WTF?!... Que merda é esta?!". Mau, mau, muito mau. Primeiro foram os Sleigh Bells com a sua fórmula: gajo começa com um riff à Slayer/entra beat box com uma batida pastilhada-anos-90/entra gaja com vozinha histriónica. Seguem-se os Cold Cave, que me pareceu estarem a fazer concorrência directa a Marc Almond, que actuava à mesma hora no palco Ray-Ban. Termina com os The Bloody Beetroots Death Crew 77 que, não há forma simpática de o dizer, são maus demais para ser verdade.
Meh... Engraçadinho, mas não passa disso. Não foi bom nem mau, nem carne nem peixe. Deles não há-de rezar a minha história. São eles e elas: The xx (tudo bem, a música é bonita, está bem composta e é bem interpretada, as vozes não falham, as letras têm todo o aspecto de ser corta-pulsos, mas agora expliquem-me lá: porquê todo o hype? O que é que eles apresentam de extraordinário e/ou nunca antes visto?) e CocoRosie (apesar de terem alguns pontos de interesse, em particular a beat box humana, a sensação final com que fiquei - ou o aftertaste, se preferirem - foi de alguma indiferença).
As agradáveis surpresas. Coisas que não faziam parte do nosso cardápio inicial, mas que acabaram por surpreender pela positiva. É caso dos Ui, que se movem num universo próprio, algures entre o post-rock de Chicago e o math rock.
Mas também dos Wild Beasts, cujos discos me deixavam com algumas reservas, mas que acabam por resultar muito bem ao vivo. Os falsettos-imagem-de-marca adequam-se na perfeição e não falham uma nota, acabando o conjunto música e voz por ser muito mais coeso e belo do que aquilo que os discos poderiam fazer supor.
E, ainda no mesmo dia, dos The Books, que apenas vimos pela conjugação de dois felizes acasos: primeiro, porque eles estavam escalados para tocar no palco ATP pelas 19 horas e, devido a problemas de som, acabaram por ser empurrados para as 00h30, em substituição dos Seefeel, que tinham cancelado a sua actuação já há umas semanas, e, segundo, porque devido a um lapso meu, deveríamos estar no palco Vice, aguardando pelos Mission of Burma. Mas há certos lapsos que vêm por bem, e acabámos (ainda bem!) por relegar os MoB para segundo plano.
Ou mesmo dos Beak>, projecto de Geoff Barrow dos Portishead, que, à falta de investigação prévia, temia estar demasiado colado à sempiterna banda de Beth Gibbons e companhia, equívoco esse que foi rapidamente desfeito, demonstrando assim que nem tudo o que está associado a Portishead é Portishead, podendo mesmo supreender-nos com propostas mais válidas e interessantes que o trabalho recente destes últimos.
As desagradáveis desilusões. Felizmente, foram poucas, sendo a mais notória os Yeasayer, provavelmente mais um caso de "one record wonders". Depois de "Odd Blood", ainda lhes dei o benefício da dúvida, pensando que eles se pudessem redimir ao vivo. Erro meu, pois não só não se redimiram, como desceram ainda mais uns furos na minha consideração. A voz de Chris Keating ao vivo é verdadeiramente miserável (ahh, os milagres de produção...), o som enrolado não ajudava à festa, restando apenas Anand Wilder para dar algum brio à coisa. Mas depois de testemunhar o homicídio a sangue frio de "Sunrise" e uma "2080" algures entre o razoável e o sofrível, não consegui resistir até o fim e à interpretação de "Ambling Alp", o crowd pleaser e, quanto a mim, único verdadeiro ponto de interesse de "Odd Blood". Talvez tenha salvo a honra do convento, mas algo me diz que não terá sido esse o caso. O que me causa um certo prurido no meio de tudo isto é verificar que uma banda tão interessante e que tinha tanto a jogar em seu favor (vide "All Hour Cymbals") limita-se a regredir no sentido de se metamorfosear em mais uma banal banda hipster saída de Brooklyn.
Seguem-lhes as pisadas os Sic Alps, relativamente aos quais há também a considerar um pré e um pós: os Sic Alps do rock psicadélico frito e estimulante de antes e os Sic Alps do rock psicadélico de elevador e maçador de agora. Há quem tenha referido problemas de som durante a actuação, mas o único problema que eu detectei ali foi mesmo o novo rumo tomado pela banda.
Em disco a coisa resulta melhor. Foram também uma espécie de desilusão. Os discos auguravam mais e melhor, mas no teste ao vivo e a cores ficaram aquém do esperado. São exemplos disso os Ganglians, que me soaram algo repetitivos.
E dos Japandroids, com uma actuação que me pareceu perfeitamente genérica. Mais do mesmo, igual a tantas outras coisas já antes vistas, particularmente em tempos recentes.
A qualidade é garantida. Esta secção é dedicada aos repetentes do Primavera Sound, que nos voltaram a brindar com grandes concertos. Comecemos pelos Fuck Buttons, com mais uma das suas estrondosas prestações.
Seguem-se Scout Niblett, desta vez numa actuação a céu aberto que, se perdeu em intimismo, o mesmo não se passou com a beleza agridoce das suas canções...
... Os incontornáveis Les Savy Fav, mais o insubstituível, o único, o inefável, o verdadeiro animal de palco Tim Harrington. Aquela 'entrada' foi pura e simplesmente genial!...
... Bradford Cox e o seu one-man show intitulado Atlas Sound, que com a sua simpatia e as suas melodias singelas e despojadas, continua a maravilhar o público do festival catalão. Não há como não gostar daquela personagem frágil e que nos parece tão sincera...
... E os Health que, não obstante a hora tardia cumulada com um atraso de cerca de meia hora (coisa raríssima neste Primavera Sound. Foi aliás o único que testemunhei) que quase nos levou à desistência, ofereceram a todos os resistentes uma actuação demolidora, de fazer erguer dos mortos o mais putrefacto dos cadáveres.
Party, party, party all the time! Concertos-espetáculo e com eles. Sejam eles os israelitas Monotonix, que arrecadam o prémio para o concerto mais tresloucado, frenético e imprevisível do festival...
Ou os Chrome Hoof, hibrído esquizóide doom-disco-futurista, fruto das mentes tortuosas dos irmãos Smee...
Ou ainda os The King Khan & BBQ Show, duo mais ou menos canadiano, misto de Black Lips (mas ainda mais divertidos), toucados ameríndios, turbantes, indumentária de gosto duvidoso e um polvo. Proporcionaram imperdíveis e estapafúrdios momento de galhofa, tanto no fórum, como no parque Joan Miró (já os The Almighty Defenders terão que ficar para uma próxima oportunidade).
Bom, mas BOM! Para além das já atribuídas, as restantes medalhinhas de ouro desta edição do Primavera Sound vão para... Os Broken Social Scene: Arcade Fire, ponham os olhos nesta trupe ao invés de andarem para aí armados ao pingarelho.
Os Thee Oh Sees: a fritura mais cool do festival.
Os Black Math Horseman: um portento. No que ao peso diz respeito, foram um bálsamo no meio de tanta indie-hipsterzice. Na fila da frente fomos uns quantos a partilhar desse mesmo sentimento. E, para quem ainda não sabe, Sera Timms é a voz que Laura Pleasants gostaria de ter.
Os Endless Boogie: um rock garageiro da velha escola (literalmente) cai sempre bem ao final da tarde.
Os Grizzly Bear: perfeito, perfeito, perfeito! Não falham em absolutamente nada. O hype, bem como o anúncio a uma certa marca automóvel, é mais que merecido.
E, last but not least, Ben Frost, com a melhor, se não única, demonstração de ruído pica-miolos da edição deste ano do Primavera Sound. Era ver o homem que veio do gelo a alienar o público, com certeza habituado a sonoridades mais sensaboronas, que lentamente ia abandonando o recinto do palco ATP.
O concerto do festival. Há coisas que só se fazem por uma banda quando se tem 19 anos. Há coisas que uma gaja com 31 anos faz por uma banda, que só se justificam se a gaja gostasse dessa mesma banda desde os 19 anos. Como apanhar um lugarzinho mesmo no centro da grade e por ali aguardar pacientemente durante 50 minutos, com tanta outra coisa a acontecer noutros palcos. Como, já com a banda em palco, berrar (ainda hoje a minha faringe se ressente) e pular e cantar as letras do início ao fim, mesmo as que já estão menos frescas na memória (inventa-se). É aquele tipo de devoção exacerbada de adolescente que uma gaja com 31 anos só poderia dedicar a uma banda que, para ela, signifique muito, muito, mas mesmo muito.
Clichés à parte, a verdade é que os Sunny Day Real Estate acompanharam-me durante os piores e melhores momentos da minha vida. E continuam a acompanhar, pois foi com enamoramento redobrado que recuperei "How It Feels to Be Something On" aqui há uns meses atrás, quando soube da reunião banda. E não obstante a minha opinião geralmente negativa face a estas reuniões, esta seria sempre verdadeiro motivo de celebração. Imperdível. Um momento histórico no que à minha história pessoal diz respeito. Pois, como Dan Hoerner disse, "foi um sonho tornado realidade". Para eles, para mim e para tantos outros como eu, que preenchiam as primeiras filas frente ao palco Ray-Ban largos minutos antes do início do concerto.
O que, de certa forma, acaba por ser um presente envenenado, pois, mau ou bom, seria indubitavelmente o concerto da vida de muitos dos presentes, só por ser SDRE. Mas foi perfeito, não tendo sido perfeito. Foi o concerto perfeito para os curtos 55 minutos, mais coisa menos coisa, de que eles dispunham. Com todo este despertar de velhas recordações e toda a emotividade (passe o trocadilho) e subjectividade que isso acarreta, não há como não ser o meu concerto do ano.
As baixas calculadas. Por um motivo ou outro, este ano ficaram pelo caminho os seguintes nomes: Tortoise, Real Estate, No Age (os três caem na categoria dos já vistos), Sian Alice Group, Matt & Kim, Za!, Dum Dum Girls (tanta coisa boa para ver, tanta sobreposição... Ainda fizemos uma segunda tentativa de aproximação à Dum Dum Girls no parque Joan Miró, mas graças a um incompreensível adiantamento do início do concerto em cerca de 25 minutos, já só apanhámos o último tema), Los Campesinos! e Black Lips (as filas para a sala Apolo demoveram-nos de sequer tentar a entrada, tanto no showcase da Wichita, como na festa de encerramento. Como tal, este ano vimos o pré e o pós por um canudo). Realmente lamentável foi termos perdido os Apse, pois os breves segundos a que assistimos deixaram-nos com água na boca... Mas os Chrome Hoof falaram mais alto.
Os topes-três.
Dia 27
1. Chrome Hoof
2. Monotonix
3. Ui (e a batota...) ex aequo com The Books
Dia 28
1. Black Math Horseman
2. Les Savy Fav
3. The King Khan & BBQ Show
Dia 29
1. Sunny Day Real Estate
2. Grizzly Bear
3. Ben Frost
Prognósticos só depois do jogo. Já tinha referido em diversas ocasiões que esta edição do Primavera Sound me parecia a mais fraca dos últimos três, quatro anos. Fosse pela nítida aposta em velhos dinossauros (a maioria dos quais pouco ou nada me dizem) cujo ganha-pão depende, em larga medida, do circuito festivaleiro primaveril e estival (espera-se que o festival catalão seja melhor e mais arrojado que isso), aposta essa que, no fundo, não é mais do que uma forma de cobrir despesas e garantir a afluência de determinado público, que é sempre fiel a tais bandas; fosse pelo investimento nalguns já quase-eternos repetentes do festival; ou, agora no âmbito das novidades, pelo investimento em bandas que, sendo ainda relativamente novas, são já do domínio comum da intelligentsia; ou ainda, com grande pena minha, pela redução do investimento em nomes ligados à música extrema/de franjas nos seus mais diversos quadrantes e pelo consequente decréscimo no ecletismo de que a organização tanto se vangloria.
Talvez seja a crise, talvez seja este o rumo pretendido desde sempre. Seja como for, as nossas expectativas este ano eram relativamente baixas. E foi por isso mesmo que talvez tenha gostado mais desta edição do festival que da do ano passado. Porque não ia com ideias pré-concebidas, nem sequer sabia o que esperar em muitos dos casos. Foi mais fácil surpreender-me e suplantar expectativas porque, pura e simplesmente, não as tinha. E surpreendida fiquei, com coisas que não conhecia (ou que conhecia mal) e que me deixaram encantada, com outras que, conhecendo relativamente bem, esperava um concerto fraco ou pouco interessante, com outras ainda que foram tudo aquilo que eu estava à espera, ou mesmo com as desilusões, pois são essas que nos fazem dar o devido valor àquilo que foi realmente bom.
Posto isto, resta-me apenas dizer adeus que, muito provavelmente, não será até para o ano, porque com o preço dos bilhetes a escalar cerca de 20€ por ano, a coisa começa a parecer cada vez mais puxada.